A chegada dos trilhos e a constituição do bairro operário: o caso da Lapa em São Paulo

Na virada do século XVIII para o XIX, São Paulo experimentou uma verdadeira revolução em suas condições materiais como consequência da propagação dos engenhos de açúcar pelo interior do planalto. Data desse período a formação de uma elite econômica rural, de caráter regional, que conseguiu acumular expressivo cabedal, além de um capital político que, com o advento da República, se aglutinaria em torno do principal partido político que representava os interesses da oligarquia paulista, o Partido Republicano Paulista (PRP).

A região açucareira mais pujante em São Paulo, que congregava as famílias mais abastadas e as principais personalidades políticas locais, se situava entre os rios Tietê e Mogi-Guaçu. Ali se localizavam os polos açucareiros de maior vulto: as vilas de Itu, Porto Feliz, Campinas, Mogi-Mirim e Jundiaí. Em contrapartida, até meados do século XIX, a região que compreende hoje o bairro da Lapa, na cidade de São Paulo, era um pequeno núcleo populacional habitado, fundamentalmente, por trabalhadores de olarias e por agricultores de pequenas propriedades rurais inseridas numa economia de subsistência de diminuta envergadura.

Não obstante o fato da região da Lapa estar assentada numa economia modesta e de base rudimentar do ponto de vista material, sua vinculação com os meios de transporte remonta às origens do bairro, pois inicialmente a região se caracterizava por ser local de passagem de tropeiros que seguiam rumo ao interior da província, através do chamado “Caminho para Jundiaí”. Tempos depois, tal rota passou a se chamar “Corredor da Lapa”, onde hoje se situam as ruas Carlos Vicari, Guaicurus, Nossa Senhora da Lapa e Barão de Jundiaí.

Com a abertura ao tráfego da estrada de ferro Santos-Jundiaí, a Lapa começou a sofrer uma série de incrementos em sua infraestrutura urbana, devido ao surgimento de um conjunto de loteamentos na região. Embora a companhia São Paulo Railway (concessionária da estrada de ferro) decidira, de início, não abrir uma estação ferroviária no local, já que a opção foi estabelecê-la no bairro vizinho da Água Branca, a Lapa passou a atrair um contingente crescente de imigrantes europeus que começaram a compor a mão de obra operária dos estabelecimentos fabris que iam sendo implantados às margens da linha férrea.

Se por um lado, houve a abertura dos loteamentos que compõem hoje a “Grande Lapa”, por outro, criaram-se inúmeros empreendimentos industriais que marcariam o cenário do bairro. No caso dos primeiros, podemos citar o início da venda de lotes agrícolas (chácaras) na chamada Vila Romana, a partir de 1888, destinada a atrair os imigrantes italianos; em 1891, o lançamento do loteamento do Gram-Burgo da Lapa, que compreendia o núcleo pioneiro da Lapa de Baixo e de toda a atual região central do bairro; também em 1891, foi a vez do loteamento de Vila Sofia, composto por 808 lotes com características mais urbanas.

Já no tocante à instalação das fábricas, diversos empreendimentos tiveram um papel decisivo na constituição do bairro e na forma de viver (e de subsistir) dos seus habitantes. O primeiro impulso nesse sentido se deveu à instalação das oficinas e da estação ferroviária da São Paulo Railway Company em 1898 e 1899, respectivamente. Transferidas da região onde se localiza o bairro da Luz, as oficinas de construção, reparo e manutenção do material rodante da ferrovia inglesa se beneficiaram da proximidade da região da Lapa ao rio Tietê, como também foi o caso da maioria das indústrias que ali se instalaram. O fato é que a partir daí o bairro foi experimentando melhorias em sua infraestrutura decorrentes da rápida urbanização, já que surgiria no local o comércio, as escolas, o bonde elétrico, a nova igreja matriz, os cinemas, a imprensa, a iluminação pública e o saneamento básico.

Os imigrantes que se estabeleceram na Lapa eram formados, em sua maioria, por italianos. Os primeiros a chegar na década de 1880 eram de famílias tirolesas, do norte da Itália. Em seguida, vieram outros grupos também provenientes da região norte do país, mais especificamente do Veneto. Residindo em chácaras, suas atividades econômicas se resumiam ao cultivo de verduras e frutas, especialmente de uvas. Devido à já mencionada transferência das oficinas da ferrovia do bairro da Luz para a Lapa, engenheiros e técnicos de origem britânica também chegaram ao bairro, além de trabalhadores franceses que, como os italianos, formavam grande parte da mão de obra de duas importantes fábricas que se instalaram no bairro: a Vidraria Santa Marina (fundada em 1896) e o Frigorífico Armour (1919).

Também com a inauguração da estação ferroviária da companhia inglesa, se formou o Largo da Estação, responsável por atrair os primeiros armazéns de secos e molhados, açougues, lojas de armarinho, além de ser o local onde famílias se reuniam aos domingos à tarde para apreciar as execuções de conjunto musicais formados e mantidos pelos próprios trabalhadores dessas empresas, a exemplo da Banda Santa Marina.

Outros estabelecimento fabris de destaque que se instalaram na Lapa e que, portanto, matizaram em termos definitivos o perfil do bairro foram: Cia. Mecânica Importadora (1900), Fábrica de Louças Santa Catarina (1912), Fábrica de Tecidos e Bordados Lapa (1913), Fundição Progresso (1916), Fundição Mecânica F. Bonaldi e Cia. (1918), Metalúrgica Martins Ferreira (1918), Metalúrgica Albion (1922) e Fábrica de Enxadas e Implementos Agrícolas Tupy (1923). Outras três empresas importantes, mas que eu não consegui identificar os anos de fundação são: Cia. Fiat Lux (fósforos), Cia. Melhoramentos (papel e celulose) e o Curtume Água Branca.

As designações Lapa de Baixo e Alto da Lapa são consequências diretas das diferenças entre tipos de moradias e perfis dos residentes do bairro. Na primeira, residiam os operários, em particular da estrada de ferro, menos qualificados, ao passo que na segunda estavam situadas as residências dos mestres de oficinas, escriturários, maquinistas, engenheiros e chefes de estação. Outros grupos de moradores que migraram de distintas regiões da Europa formaram bairros adjacentes à Lapa como as vilas Anastácio e Ipojuca. Formados em meados dos anos 1920, tais bairros tiveram entre seus primeiros moradores imigrantes húngaros, poloneses, russos e lituanos.

Outras duas importantes empresas que compuseram o cenário da Lapa e reforçaram, portanto, o seu caráter tipicamente operário foram a Companhia Antarctica Paulista e o Núcleo Industrial da Água Branca, que pertencia às Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. A área onde se instalou a Companhia Antarctica, na antiga avenida Água Branca, foi uma das primeiras zonas industriais da cidade de São Paulo. Em 1920 inaugurou-se o Núcleo Industrial da Água Branca, complexo industrial que assinalou a expansão espacial das Indústrias Matarazzo na cidade de São Paulo. Sua implantação se insere em um contexto de diversificação das atividades industriais do grupo, pois, até então, as Indústrias Matarazzo concentravam-se na zona leste e central da cidade e se dedicavam apenas à produção de farinha de trigo e tecidos.

Os diversos setores do Núcleo Industrial da Água Branca estavam interligados por passarelas internas e escoavam sua produção por um ramal ferroviário próprio vinculado à E.F. Sorocabana. Em uma parte do terreno da Água Branca se localizava o Parque Antarctica, uma das primeiras áreas verdes de lazer da cidade que serviu como campo de futebol do Germânia, atual Clube Pinheiros. As atividades do Núcleo da Água Branca permaneceram em funcionamento até 1986, quando as Indústrias Matarazzo de Óleos e Derivados, última unidade ativa no terreno, voltada para a produção de sabões, sabonetes e velas se transferiram para o município de Santa Rosa de Viterbo, no interior do estado de São Paulo. No mesmo ano, o complexo foi colocado abaixo, restando apenas as casas das caldeiras e a do eletricista localizadas às margem da atual avenida Francisco Matarazzo.

Fundada em 1888, a sede da Companhia Antarctica se situava em outro importante bairro operário de São Paulo, na Mooca à avenida Bavária. A empresa abriu sua filial na Água Branca em 1912, onde hoje se localiza o estádio Alianz Parque, pertencente à Sociedade Esportiva Palmeiras.

Os bairros da Lapa e Água Branca, assim como outros bairros (Mooca, Pari, Brás, Luz, Bom Retiro), são representativos da estrutura industrial da cidade de São Paulo por terem sido os primeiros bairros operários a se formarem. A historiografia destaca um conjunto de características comuns à grande parte das indústrias que se instalaram nesses bairros durante o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. A mão de obra provinha, em sua maioria, das zonas rurais da Europa, recebia baixos salários, não dispunha de proteção social do Estado nem direitos sociais e trabalhistas, além de ser politicamente marginalizada. Tema este que discutirei nos próximos textos.