Mão de obra e contratos de trabalho numa economia em transição

A transição do trabalho escravo para o trabalho livre está entre os principais temas tratados pela historiografia dedicada a analisar a expansão da economia cafeeira em São Paulo no decorrer da segunda metade do século XIX. Tendo como ponto de partida o entorno da cidade do Rio de Janeiro, a itinerância do plantio do café seguiu o curso apontado pelo rio Paraíba do Sul ao formar verdadeiras cidades cafeeiras, primeiro, na região do Vale do Paraíba, e, mais tarde, no interior rumo ao oeste da província de São Paulo ao atingir cidades como Campinas, Rio Claro, Mogi Mirim, Ribeirão Preto, Araraquara, Jaú, etc. Além disso, a questão da constituição de um mercado de mão de obra livre no Brasil se insere num quadro mais amplo que podemos denominar como o da consolidação de um sistema econômico pautado por relações capitalista de produção.

Não se pode negar que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre que, diga-se de passagem, só foi possível graças à imigração europeia subvencionada pelo Estado, foi uma resposta a algumas condições que permitiram o desenvolvimento de uma economia industrial no país. A massa de salários dos trabalhadores livres acelerou a monetização da economia e, por conseguinte, estimulou a produção de manufaturados voltada para o atendimento de um mercado de consumo interno. Há, contudo, uma quantidade significativa de estudos que tem abordado direta ou indiretamente a institucionalização do mercado de mão de obra livre, de modo a contemplar invariavelmente o binômio café e indústria, ainda mais quando o foco é a província/o estado de São Paulo. Nesse passo, a implantação da rede de estradas de ferro em conjunto com o uso e a difusão das máquinas de beneficiamento agrícola assumem papel-chave nesse processo de transformação das relações de trabalho numa economia fortemente marcada pela atividade agroexportadora.

Cheywa Spindel, por exemplo, pontua que o advento das ferrovias e das máquinas de beneficiamento introduziu na organização mercantil-escravocrata um segmento capitalista que proporcionou mudanças na base técnica da produção que iriam dinamizar o processo de consolidação das relações capitalistas no interior da economia cafeeira. Tais mudanças iriam também pressionar o sistema escravista ao exigir a solução para a questão da “escassez de braços” para a lavoura. Assim, a intensificação da produção apoiada e sustentada por novas tecnologias passa a demandar um novo tipo de trabalhador, isto é, impõe uma nova demanda que, por sua escala e natureza, não poderia ser suprida a partir de relações de trabalho baseadas na mão de obra escrava. Fazia-se necessário, portanto, introduzir o trabalho livre e, assim, uma nova relação de produção.

Pedro Carvalho de Mello e Robert Slenes sustentam que não se deve presumir que a escravidão figurasse como um obstáculo intransponível à especialização, ao progresso tecnológico e ao aumento da produtividade do trabalho. Para eles, não foi a escravidão em si, mas a existência de um sistema coercitivo de trabalho, do qual a escravidão é apenas uma das modalidades, que produziu efeitos negativos sobre a sociedade brasileira e atrasou a adoção em nosso país de técnicas de produção intensivas em capital. É, portanto, a existência do trabalho barato e coercitivo nas suas múltiplas manifestações – escravo, servil e livre – que impõem esse estado de coisas que assinala a dificuldade histórica entre nós brasileiros em desenvolver os princípios básicos de uma verdadeira economia de mercado.

Embora a solução definitiva para o problema da mão de obra tenha surgido somente ao final dos anos 1880, não se verificaram barreiras à expansão dos cafeeiros pelo oeste paulista. O fato é que a dinâmica da economia cafeeira encarnava suas próprias contradições que se reproduziam ao longo do tempo, pois mesmo no período de maior expansão dos cafezais (1860-1880), observou-se a intensificação do regime escravocrata, realimentado pelo tráfico interprovincial, no exato momento da vigência de medidas legais que visavam extingui-lo. Em trabalho que relaciona a construção das estradas de ferro com a constituição do mercado de trabalho no Brasil, Maria Lúcia Lamounier salienta que até a implantação da imigração subsidiada pelo governo e a difusão do sistema de colonato, que ocorreu apenas a partir de meados da década de 1880, as soluções para a questão do trabalho numa economia em transição ainda preservavam a coerção, especialmente por meio de contratos de serviços e legislações repressivas que obrigavam ao trabalho e buscavam restringir a mobilidade dos trabalhadores.

É importante observar que antes da adoção do sistema de colonato, muitas fazendas realizavam contratos de parceria com os imigrantes ou, em termos mais precisos, a parceria de endividamento, que, grosso modo, era um regime extremamente desfavorável aos trabalhadores adventícios que se endividavam às turras, sendo imposta a eles uma alta taxa de exploração semelhante a que incidia sobre os escravos. Já o colonato trazia no seu cerne um conjunto maior de possibilidades ao imigrante que recebia uma remuneração monetária que se aproximava da categoria salário. Em linhas gerais, o colonato estabelecia, de uma lado, um pagamento em moeda ao colono referente ao número de pés de café sob seu trato durante o período de entressafras; de outro, se garantia uma quantia por saca de café colhida pelo colono e sua família à época da colheita. Ademais, aos colonos era concedido o direito ao uso de um lote de terra para cultivo próprio, ou o cultivo de alimentos nas fileiras entre os cafezais. Eventualmente também, a ele era possível vender parte do excedente dessa produção de víveres nos núcleos urbanos mais próximos.

O problema da mão de obra se coloca mais evidentemente com a extinção do tráfico de escravos em 1850. Daí até a abolição definitiva da escravidão em 1888, surgiram várias propostas visando um processo gradual de emancipação dos cativos. Lamounier nota que o debate a esse respeito nos órgãos legislativos e na imprensa revela tentativas reiteradas de garantir aos fazendeiros o controle cada vez maior sobre os trabalhadores. Nesse sentido, a emancipação deveria ter como alvo os indivíduos ao invés dos escravos em sua coletividade. Ela teria de ser gradual, por razões de ordem e segurança, e capaz de manter inalterados os níveis de produção.

Outro ponto controverso dessa mesma questão se relaciona à ideia da colonização subsidiada, de um lado, e o assentamento de imigrantes em terras devolutas, por outro. Ou seja, o eixo do debate durante todo o século XIX se voltava para a promoção da imigração baseada na pequena propriedade em contraposição à promoção da imigração de trabalhadores para a grande lavoura. Lamounier comenta que frente às profundas divergências entre interesses distintos nas províncias e no interior do governo imperial, houve ações políticas tomadas nos dois sentidos. Em resumo, para a autora:

“Os debates entre colonização e imigração deixam transparecer implicações que ultrapassam ideias de povoar o país e suplementar ou substituir os escravos. As tentativas de transformar as bases da agricultura para a pequena propriedade e/ou de encontrar novas fontes de trabalhadores ligavam-se estreitamente à questão da emergência da nação e ao reordenamento de instituições e da sociedade. Sem dúvida, era essencial solucionar o problema da ‘escassez de braços’, mas este não era o único desafio da nova administração. Era preciso ainda decidir quem poderia se tornar proprietário e definir a composição racial da nova nação. As políticas sobre colonização, em geral, com objetivos demográficos e povoamento privilegiavam a concessão de terras a imigrantes. ‘Mas’, perguntava-se então, ‘e a população nativa?’ ‘Seria justo doar terras a imigrantes, diante do grande número de brasileiros vivendo uma existência marginal à agricultura de exportação?’.”

De modo geral, estudiosos do assunto como Emília Viotti da Costa, Robert Conrad e Warren Dean, têm relegado a importância do trabalhador nacional livre dentro da economia de exportação. Conrad, por exemplo, não poupa palavras para afirmar que os brasileiros livres e pobres representavam à época um papel marginal na economia dominante. Todavia, cabe questionarmos: quais seriam as razões da não-utilização desse contingente de mão de obra abundante e barato? As hipóteses em torno desta questão envolvem, via de regra, determinantes econômicos relacionados à rentabilidade de se utilizar o escravo, ou o imigrante, em detrimento do trabalhador livre nativo. Spindel esclarece que o elemento livre nativo não deve ser visto como “marginal” à economia cafeeira, uma vez que representa uma alternativa às outras opções de mão de obra muito mais caras. Esse tipo de trabalhador era costumeiramente empregado em atividades complementares determinadas por uma divisão social do trabalho na qual o trabalho exclusivo nos cafezais ficava por conta dos escravos e/ou colonos imigrantes.

As preocupações distintas que envolviam a escolha por um ou outro sistema de colonização, por um ou outro sistema de trabalho, ou por um ou outro tipo de trabalhador, revelam concepções diversas da sociedade e da nação que se queria formar. Diante das diversas propostas ventiladas, cumpre ressaltar que ao longo de todo século XIX vigoraram modos diversos de vinculação da população à terra, aos instrumentos de trabalho e ao incipiente mercado consumidor de manufaturados que, direta ou indiretamente, estavam submetidos à lógica do grande capital. Muito mais do que um engendramento de relações não-capitalistas, ou a permanência de uma organização social com resquícios feudais, o processo de constituição do mercado de trabalho no Brasil esteve marcado pelo próprio desenvolvimento característico do capitalismo numa economia periférica, como bem pontuou Sérgio Silva. A figura social do colono é emblemática nesse sentido, pois a ele cabia um rol significativo de tarefas no qual nem sempre tinha ligação direta com a economia agropexportadora. Conforme definiu Thomas Holloway, “o colono era um assalariado, um lavrador de subsistência, um produtor e negociante de mercadorias agrícolas e também um consumidor, tudo ao mesmo tempo”.

Com efeito, a inexistência de um mercado de trabalho no sentido pleno, em função da representatividade que assumiam as rendas não-monetárias do colono, fazia com que o salário monetário ficasse com frequência abaixo do nível de reprodução dessa mão de obra, reduzindo assim os custos salariais do fazendeiro e funcionando como um amenizador das condições de vida do trabalhador livre, na medida em que este produzia também para sua subsistência e de sua família. O fato é que o país tardou em abolir de vez a escravidão, ao passo em que a transição para um regime baseado no trabalhador livre assalariado se deu no bojo de uma economia que se vinculava umbilicalmente ao comércio do além-mar. Tal dinamismo teve influência substancial sobre a forma e o rumo adotados pelo processo de industrialização da economia brasileira. Assim, ao passo em que a realização da produção cafeeira, amparada sistematicamente pelas políticas governamentais da chamada República Oligárquica, garantiu o aparecimento da indústria num movimento de diversificação do capital cafeeiro, sua natureza dependente das flutuações do comércio externo carregava consigo limites que comprometiam no todo a capacidade dos agentes econômicos de realizarem uma verdadeira revolução industrial, no sentido de se estabelecer uma estrutura produtiva descentralizada regionalmente e razoavelmente bem diversificada.

A história econômica do Brasil aponta para o fato de termos tardado em diversificar nossa pauta produtiva e, para determinados autores, isso é uma decorrência do modelo de industrialização adotado em praticamente toda a América Latina. Embalado pelo fenômeno do populismo, o modelo latino-americano de substituição de importações se mostrou inconsistente com a tentativa de implantar, por exemplo, um setor de bens de capital amplo e robusto na região. De certo, tal modelo comportava também contradições internas que, em certas conjunturas, se mostravam frequentes e aparentemente insolúveis. De qualquer modo, a condição periférica do Brasil de hoje se explica não somente pelo fardo histórico representado pelo sistema mercantil-escravista voltado para a agroexportação, mas também pela trajetória que assumiu no país o desenvolvimento industrial, fundado na relação estreita e, em muitos casos, corrompida entre Estado, empresariado nacional e capital estrangeiro. Tema sobre o qual voltarei a tratar nos próximos textos.

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