Café, câmbio e indústria na república dos coronéis

João Manuel Cardoso de Mello, em O capitalismo tardio, afirma que a industrialização da economia brasileira foi uma das principais consequências do desenvolvimento capitalista no país. Será? Ou teria sido a reprodução de um tipo de economia, na verdade contrário à indústria, especializado na produção monocultora de produtos primários destinados aos mercados externos? Determinada primeiramente por fatores internos, e secundariamente por fatores externos, a industrialização foi o resultado de um longo processo histórico marcado, em primeiro lugar, pela introdução de técnicas de produção capitalistas fundadas sob relações de produção não-capitalistas. Tal visão presente no livro supracitado se destacou dentre outras interpretações de história econômica por romper com a tradicional periodização elaborada por Celso Furtado em Formação econômica do Brasil, que propõe um período de crescimento para fora até 1929 e a transição, a partir dos anos trinta, para um crescimento voltado para dentro. Assim, há em O capitalismo tardio a formulação de uma periodização distinta da de Furtado que enfatiza a transição da economia colonial para a mercantil nacional baseada no trabalho escravo e, subsequentemente, para a economia capitalista exportadora. Foi na última fase, especialmente entre 1880 e 1920, que se deu a origem e a consolidação do capital industrial no Brasil.

Essa última fase identificada por Cardoso de Mello coincide com o período da história do Brasil conhecido como o da Primeira República, ou República Velha, ou ainda República Oligárquica. Para José Murilo de Carvalho, a Primeira República ficou conhecida como a “república dos coronéis”, dando significado conceitual ao termo coronelismo. Este, segundo o autor, consiste na aliança política dos chefes locais, também conhecidos como “coronéis”, com os presidentes dos estados e desses com o presidente da República visando o estabelecimento de uma agenda política em comum que congregasse, razoavelmente, os interesses das principais lideranças políticas. É possível subdividir a República Oligárquica em três períodos distintos a partir da análise das disputas que se efetuaram no âmbito do Estado em torno, principalmente, da política cafeeira.

O primeiro período tem início com o golpe militar que deu origem ao regime republicano e se encerra com o governo de Campos Sales, após uma fase conturbada de agitações e revoltas que mobilizou diversos grupos políticos oponentes entre si. O segundo período, por outro lado, se caracteriza por uma relativa estabilidade política, em função das prerrogativas institucionais introduzidas pelo pacto da chamada política dos governadores. Tal política tinha por objetivos confinar as disputas políticas no âmbito de cada estado, impedindo que conflitos intraoligárquicos transcendessem as fronteiras regionais e provocassem instabilidade política no plano nacional; além disso, visava se chegar a um acordo entre a União e os estados, bem como pôr fim às hostilidades existentes entre Executivo e Legislativo, controlando a escolha dos deputados. Já o terceiro e último período compreende a crise dos anos vinte e tem como limite a eclosão da Revolução de 30.

Não se pode fazer uma avaliação consistente da política cafeeira do período sem empreender alguma consideração especial ao partido da situação durante toda a Primeira República, o PRP (Partido Republicano Paulista). Fruto da centralidade política que tinha os cafeicultores de São Paulo, o PRP deteve uma autonomia ímpar dentro do quadro político de forças a ponto de exercer uma forte ingerência nas principais questões de política nacional durante a maior parte da Primeira República. A autonomia do governo paulista e essa ingerência na política nacional foram conquistadas com a Constituição de 1891 – que consignava uma forma de governo (a República Liberal Federativa) que ia ao encontro dos interesses das oligarquias –, fortalecidas em 1898 por meio da já mencionada política dos governadores e ganharam novo impulso com os sucessivos planos de valorização do café de 1906, 1917 e 1921. No entanto, o poder político conquistado pelas elites latifundiárias recebeu um duro golpe nos anos vinte com a ascensão do movimento tenentista, a intensificação das cisões ideológicas no seio da classe cafeicultora e a fragmentação dos quadros do PRP a partir da fundação do Partido Democrático em 1926.

A historiografia é praticamente unânime em apontar para o papel-chave do câmbio quando o tema é a política cafeeira da virada do século XIX para o XX. A crise do encilhamento no início da década de 1890 se refere não apenas ao movimento especulativo que ocorreu na Bolsa do Rio de Janeiro, mas também à abrupta desvalorização do câmbio. Atribuía-se a responsabilidade da desvalorização cambial à forte expansão do crédito promovida pelo primeiro ministro da Fazenda do período republicano, Rui Barbosa, em conjunto com a fuga de capitais que já estava em curso desde os últimos anos do Império. Neste ponto, até aqueles que não atribuíam às emissões a causa dos problemas reconheciam seu excesso. Se por um lado, não se recomendava a supressão do direito emissor dos bancos e a encampação do meio circulante por parte do Tesouro, por outro, a maioria dos deputados e senadores da época concordava que as emissões deveriam ser unificadas, conferindo o poder emissor a um único banco que teria, dessa forma, a vantagem de estabelecer maior controle sobre o mercado.

Para Annibal Villela e Wilson Suzigan, a medida de política econômica mais importante até então adotada no país foi a lei bancária de 1888, que dispunha exatamente sobre os bancos de emissão. Aliado a isso, a produção agrícola do período de 1889 a 1894 achava-se extremamente prejudicada pela abolição da escravatura e pela seca de 1889. Por seu turno, o governo expandiu o crédito aos fazendeiros e realizou despesas extraordinárias na casa dos 50 mil contos entre 1888 e 1890. O resultado não poderia ter sido outro: a média anual do aumento dos preços foi de cerca de 20% e o taxa de câmbio sofreu rápida e forte desvalorização.

Um programa mais austero de retirada do meio circulante só foi levado adiante em 1898, com a subida de Joaquim Murtinho ao Ministério da Fazenda no governo Campos Sales. A política deflacionista proposta por Murtinho tinha por objetivo principal a valorização da taxa de câmbio, uma vez que o câmbio era a variável central da análise do desempenho da economia brasileira daquele período. A esse respeito, Flavio Saes esclarece que:

“A valorização da moeda nacional, política que atendia não só a certos interesses internos, mas também constituía a base para reformular-se, junto aos credores, a dívida externa do Brasil (nesse momento próximo da insolvência), acabava por agravar a crise cafeeira: a superprodução, já delineada em torno de 1896, via os efeitos negativos sobre o preço em mil-réis do produto ampliados pois o aumento da taxa de câmbio (dinheiros por mil-réis) reduzia também a receita em mil-réis do cafeicultor para um dado preço em moeda estrangeira. Daí a emergência (ou o alargamento) dos protestos da lavoura do café, particularmente atingida pelo política seguida após o Funding Loan.”

Paralelamente, a forma pacífica segundo a qual se pôs fim à escravidão, associada aos altos preços internacionais do café, criou uma atmosfera de entusiasmo no seio da elite cafeicultora, cuja expressão foi a duplicação do número de cafezais e o aumento, em três vezes mais, da produção durante os anos 1890. Essa expansão arrebatadora decorreu de um conjunto de circunstâncias que unia a ampliação do mercado consumidor internacional do café, a grande oferta no país do fator terra em conjunto com o aumento das concessões de terras devolutas, o êxito das políticas imigratórias e o incremento do mercado de bens de consumo leves capaz de atender às necessidades de uma nova massa de trabalhadores assalariados. Na esteira desses eventos, os três primeiros e sucessivos governos republicanos outorgaram privilégios demasiadamente vantajosos à cafeicultura. Não obstante, tais políticas expansionistas trouxeram mazelas que atravessaram o período do encilhamento e, ao mesmo tempo, favoreceram o retorno de políticas recessivas ao final do século XIX.

O programa de saneamento econômico de Murtinho foi considerado uma imposição dos credores externos. De acordo com Wiston Fritsch, a posição fragilizada de negociação do governo brasileiro, sua preocupação crescente com as consequências orçamentárias da intensa depreciação cambial e sua pouca compreensão dos efeitos de uma deflação súbita e violenta implicaram a que o governo aceitasse a condição de levar adiante novas e amplas medidas deflacionárias, fiscais e monetárias, após a concessão do Funding Loan em 1898, um acordo moratório da dívida externa. Ademais, havia também importantes pressões internas para a alteração da política econômica. Parte do grande capital cafeeiro que tinha seus interesses em estradas de ferro, além de outros investimentos em empresas de serviços públicos, via-se prejudicado com a desvalorização cambial e com os efeitos negativos da inflação.

No geral, a política deflacionária foi bem sucedida, pois se conseguiu reduzir o papel-moeda em circulação e os preços caíram cerca de 30% até 1902. A taxa de câmbio valorizou-se e o saldo da balança comercial experimentou um salto apreciável, a partir de 1900, devido ao aumento do preço do café e do crescimento das exportações de borracha. O caminho percorrido, inclusive nos anos subsequente até a eclosão da Primeira Guerra, foi praticamente o mesmo: estabilização do meio circulante, valorização da taxa de câmbio, cobrança em ouro dos direitos alfandegários e equilíbrio do orçamento governamental. Se do ponto de vista da política fiscal o período de 1899 a 1902 é considerado pela literatura como um período recessivo, o mesmo não se pode afirmar do período seguinte, entre 1903 e 1913, quando o governo amplia significativamente suas despesas de custeio e o investimento através de um amplo programa de obras públicas de saneamento, de construção e aparelhamento de portos e ferrovias e de urbanização da capital federal.

Financiados por meio de novos empréstimos externos, tal programa, de início, não acarretou o desequilíbrio das contas públicas até 1907-08, quando uma crise internacional comprometeu a principal receita tributária do governo, o imposto sobre importação, ao reduzir drasticamente os níveis das transações com o comércio externo. Em paralelo, os fazendeiros de café começaram a aumentar a pressão sobre o governo ao se queixarem da depressão dos lucros da cafeicultura frente ao movimento de valorização do câmbio objetivado pela política econômica. Com as perspectivas de uma grande safra cafeeira em 1906-07, o que, por conseguinte, acarretaria a queda da cotação do preço do produto no mercado internacional, criaram-se condições para o fortalecimento de um movimento que já vinha se delineando desde os últimos anos do século: a intervenção oficial do governo no mercado cafeeiro.

A forma escolhida pelo governo para sustentar o preço internacional do café assumia a feição típica de uma política keynesiana, pois se dava pela compra dos excedentes do produto que, por sua vez, era possível mediante a obtenção de empréstimos no exterior. Dessa forma, o governo conseguia atender aos interesses dos cafeicultores sem prejudicar os resultados da política monetária e cambial vigente desde o Funding Loan. É nesse contexto que surge a assinatura do Convênio de Taubaté em 1906. Embora não fosse uma intervenção oficial do governo federal, os estados produtores conseguiram com que sua política de valorização fosse garantida contra eventuais valorizações da taxa cambial. Concomitante à assinatura do Convênio, criou-se um instrumento destinado a assegurar a estabilidade do câmbio, a Caixa de Conversão. De acordo com Saes, o mecanismo de funcionamento da Caixa visava a estabilidade do câmbio a certa taxa que, no caso, foi determinada a 15 dinheiros por mil-réis. Como a hipótese que a sustentava era de que a taxa de mercado seria um pouco acima dos 15, esperava-se que o detentor de ouro (ou moeda metálica) fosse trocá-las por uma quantia em mil-réis maior do que a que ele obteria no mercado. Sob tais circunstâncias, era possível evitar não só as flutuações cambiais, mas também a valorização adicional do mil-réis que, àquela altura, se apresentava como algo extremamente provável de ocorrer em face dos empréstimos contraídos para o programa de defesa do café que inundariam o mercado de divisas de moeda estrangeira.

A Caixa de Conversão representou o mecanismo de ajustamento associado com a operação regular de um sistema monetário baseado no padrão ouro, ou seja, “movimentos de ouro causariam mudanças na oferta de moeda, induzindo variações estabilizadoras no balanço de pagamentos em conta corrente.” (Fritsch, 1990, p. 39). O fato é que, com a reforma monetária de 1906, o governo brasileiro adotou o padrão ouro e vinculou a estabilidade monetária às oscilações do comportamento da economia mundial, intensificando, assim, a importância para a determinação do nível interno de renda dos aspectos exógenos representados pela demanda internacional de produtos primários e pelo influxo de capitais estrangeiros.

Por conta disso, a maioria dos autores concorda que foi durante a década que precede a Primeira Guerra que a economia brasileira apresentou uma forte tendência à internacionalização. Sérgio Silva, por exemplo, comenta que na medida em que se garantia a continuidade da acumulação da economia cafeeira, núcleo do desenvolvimento capitalista no Brasil, a política de valorização cambial também beneficiava o capital estrangeiro, pois foi a partir dela que grupos estrangeiros tornaram-se dominantes ao nível da comercialização do café e filiais de bancos ligados a esses grupos se expandiram rapidamente. Via de regra, num contexto de total liberdade das operações cambiais que vigorou, grosso modo, de 1889 a 1917, a variação do câmbio era o sinal condutor da política econômica dos sucessivos governos, seja na desvalorização quando se suavizava a queda dos rendimentos causada pela redução das exportações cafeeiras, num mecanismo que Furtado chamou de “socialização das perdas”, ou na valorização para auxiliar o acesso aos créditos de financiamento externos.

Segundo Villela e Suzigan, embora o objetivo da política cambial até 1930 fosse quase sempre proteger a renda do setor cafeeiro, e secundariamente garantir divisas estrangeiras ao governo para que se pudesse arcar com os serviços da dívida externa, a grande beneficiada foi, quase sempre, a indústria. Isto porque, nos momentos de desvalorização do câmbio, as importações encareciam e abriam espaço para o crescimento da produção industrial interna. Em contrapartida, nos momentos de valorização, apesar da retração da produção industrial doméstica em função do aumento da importação de produtos vindos do exterior, as empresas nacionais podiam aumentar seus investimentos na formação de capital visando ampliar a produção nos períodos subsequentes.

A suscetibilidade da economia brasileira ao comportamento oscilante da economia internacional fica ainda mais evidente ao analisarmos a conjuntura do pós-guerra, especialmente a década de vinte. Frente à adoção de políticas monetárias restritivas por parte dos Estados Unidos e do Reino Unido, como forma de conter as pressões inflacionárias após o fim da guerra, o governo brasileiro buscou minimizar a magnitude e a rapidez da desvalorização do câmbio, uma vez que esse resultado prejudicaria a já complicada situação orçamentária do governo federal que dependia excessivamente das tarifas alfandegárias e que tinha nas despesas em moedas estrangeiras o principal traço dos gastos públicos. Além disso, uma rápida e expressiva desvalorização acarretaria certamente um impacto inflacionário considerável. Soma-se a isso o fato de ter havido uma forte queda dos preços internacionais do café que serviu de alerta para o governo entender que a intervenção direta no mercado do produto era um requesito indispensável ao restabelecimento do equilíbrio do balanço de pagamentos, como nos esclarece Fritsch.

O governo de Arthur Bernardes (1922-1926) assinalaria uma nova etapa da política cafeeira. Em meio a uma conjuntura de pressão inflacionária e de deterioração do câmbio, como resultado do excesso de emissões monetárias que sustentaram o terceiro Plano de Valorização do Café, uma lei estadual de 1924 criou o Instituto Paulista de Defesa Permanente do Café e que, pouco tempo depois, se transformou no Instituto do Café do Estado de São Paulo. Na prática, a responsabilidade sobre a política de defesa do café se transferiu da União para o governo do estado de São Paulo, que passou a regular a entrada do café no porto de Santos e a comprar os estoques do produto quando julgasse necessário visando evitar as crises de superprodução.

Frente aos sucessivos desequilíbrios que marcaram o desempenho econômico do Brasil durante a Primeira República, Fritsch nos lembra também que existiam dois tipos de regime cambial no correr desse período: taxas de câmbio flutuantes com emissão de moeda fiduciária gerenciada pelo Tesouro, ou seja, pelo Banco do Brasil, e taxas de câmbio fixas em regime de padrão ouro que foram adotadas entre 1906 e 1914 e, novamente, entre 1927 e 1930. Já o período de 1924 a 1929 correspondem à fase áurea das exportações de café com o seu preço cotado internacionalmente nos níveis mais altos até então registrados. Não obstante ao sucesso da política de valorização durante esses anos, o acréscimo de renda do setor cafeeiro não gerou, como em outros períodos, um volume muito maior de importação de bens de capital que pudessem fomentar ainda mais a indústria nascente.

Em verdade, a maior parte desses recursos estava comprometida com um aspecto estrutural da nossa trajetória política ou com certo círculo vicioso de nossa economia, acostumada a arcar com o pagamento da dívida externa e a buscar invariavelmente o controle da oferta de moeda e a estabilidade cambial. Uma situação peculiar a uma república jovem, sem dúvida, nascida a fórceps em decorrência de um golpe e que, por isso, a deixou assim, raquítica, enfraquecida, vulnerável e suscetível aos mais diversos contratempos.

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